Música de Montagem: canções nascidas da pandemia

Grupo paulistano vem se destacando pela intensa experimentação estética, combinando recursos eletrônicos e instrumentação orgânica na busca por texturas sonoras originais. Novos trabalhos trazem parceria com Chico César e inspiração no trabalho do diretor de cinema Lars von Trier.

A experiência da pandemia afetou bilhões de pessoas ao redor do planeta, tanto no aspecto biomédico — que incluiu mais de seis milhões de vitimas e centenas de milhões de casos registrados — quanto na esfera emocional. Gradativamente, está surgindo a produção artística gerada por aqueles longos meses de isolamento, ansiedade e elevado grau de estresse. Agora é o quinteto Música de Montagem que está apresentando as canções que gestou e concebeu naquele período difícil. Os singles, intitulados Melancholia II e Alada, chegaram às plataformas digitais de música em 10/11.

O líder do grupo, o músico, compositor e arranjador Sergio Molina, explica que a concepção artística do trabalho envolve o enlace entre os sons e as palavras: sons para palavras, palavras para sons. A cada passagem poética revela-se uma nova sonoridade musical, um espaço que leva um tempo, um tempo que é também textura. E essas sonoridades são complexas, articulando muitas vezes elementos aparentemente opostos. Isso permite que a consonância seja seguido pela dissonância, momentos de desassossego se alternem com outros tranquilos, elementos de cultura pop se alternem com dodecafonismo e os arranjos escritos abram espaço para a livre improvisação. Para cada momento da composição, uma solução; para cada canção, um ouvido.

“Houve dois eventos durante a pandemia que resultaram nessa nova proposta do Música de Montagem”, explica ele. “Primeiro, voltei a compor muito ao piano, em especial algumas baladas mais lentas. Em segundo, escrevemos a letra de uma canção que se chama Elegia, da Lilian Jacoto, que vai estar no nosso próximo álbum. Essa letra fala sobre a pandemia”, diz.

Paralelamente, enquanto esse repertório começava a surgir, o músico recebeu um convite do Sesc Carmo para organizar um projeto chamado Laboratório Música em Nuvem, enquanto transcorria o período de isolamento total da pandemia. “Fui convidado para montar uma equipe de músicos. A proposta era que, durante cinco lives, a gente compusesse uma canção ao vivo e na frente do público. Nesse processo de composição, acabei levando umas propostas um pouco mais diretas, como harmonias mais simples e levadas mais, digamos, pop. Porque justamente era um material que seria mais fácil de trabalhar e acabou resultando na canção Escuta, cujo videoclipe está no nosso canal no YouTube”, conta Molina. A partir desse material, as baladas mais lentas, compostas ao piano, adquiriram uma sonoridade inspirada nas músicas do fim dos anos 70.

Esses conceitos eletrônicos mais básicos foram expandidos pelo amplo conhecimento do engenheiro de áudio Gustavo Lenza e o conceito se formou. “Comecei a imaginar um álbum e um show nesse sentido. E passei a pensar também quem seriam as pessoas a convidar para fazer parte desse universo. Inclusive surgiu a ideia de chamar a Xofan para cantar nessa nova formação, pensando no lançamento de um novo álbum para 2024″, diz o mentor do grupo. A atual formação conta com  Sergio Molina (composições, piano, violão processado e vocais); Xofan (voz principal e pedal loop); Clara Bastos (baixo, pedais e vocais); Vitor Ishida (guitarra, pedais e vocais) e Priscila Brigante (bateria e bateria eletrônica).

Com graduação e pós-graduação em Música pela Faculdade Santa Marcelina, Xofan assumiu o vocal principal do grupo e enfrenta o desafio de agregar sua voz a uma miscelânea sonora tão inventiva. Sua participação nestes dois singles, porém, eliminam qualquer dúvida sobre o seu talento e mostram que a cantora chegou para ficar. “Quando veio o convite fiquei nervosa. Pensei: ‘caramba, vou tocar com essas pessoas, será que dou conta?’ Mas tenho uma característica muito favorável. Mesmo quando estou com medo, sinto algo desafiador em mim que me faz encarar e entender que tenho condições para estar ali, junto com esses outros excelentes artistas”, diz.

Ela já conhecia o grupo e acompanhava os shows. “O Sergio já me conhecia. Até apresentei uma canção deles como atividade da minha formação. Ele fez o convite e iniciamos os encontros. Apenas ele e eu, conhecendo as canções e fazendo os ensaios iniciais de voz e violão. Posteriormente conheci a banda, começamos a ensaiar e o som fluiu”, conta. Ela diz que é um desafio inserir a voz numa sonoridade diferente, com a qual não tinha nenhuma familiaridade. “É um trabalho de intérprete, dentro de um universo de melodias que não são simples. Mas vejo como um trabalho coletivo. Apesar das dificuldades, como eles tocam muito, eu aproveito e surfo na onda”, diz Xofan.

Singles incluem parceria com Chico César

Os novos singles, Melancholia II e Alada receberam um cuidado especial para assegurar a qualidade de áudio. Ambas foram mixadas por Gustavo Lenza e masterizadas nos EUA por Felipe Tichauer [Red Traxx Mastering].

A melodia de Melancholia II foi composta por Molina, inspirada no filme homônimo de Lars von Trier. A letra, de autoria de Chico César, reelabora esse universo imagético em versos como “a lua cai do céu/um véu de escuridão”, e incorpora também referências de outra produção do cineasta dinamarquês, Dogville (“as ruas são sem chão/pessoas são ninguém”). O resultado é uma sonoridade híbrida, que funde sons eletrônicos e instrumentos orgânicos. Destaque para a mixagem criativa de Lenza, que valoriza a exploração textural das vozes da cantora Xofan por meio de efeitos e processamento de áudio.

“Se na primeira versão de Melancholia II em 2018, foi a minha melodia que inspirou a letra de Chico César, agora a situação se inverteu; a poeticidade do Chico passou a ser um novo ponto de partida, um estímulo para a produção dos sons eletrônicos programados e a articulação dos sons acústicos reinventados no arranjo”, aponta o coautor.

Já para a canção Alada (Sergio Molina / Paulo Souza), o quinteto partiu da sonoridade das baladas ao piano da década de 1970, celebrizadas por nomes como Paul McCartney, Queen e Guilherme Arantes, e buscou recriá-la e atualizá-la para o atual universo sonoro. Uma das particularidades do arranjo é a incorporação de sons eletrônicos e de efeitos nos vocais e nos timbres que foram processados junto à organicidade da banda. Outro destaque está na interpretação de Xofan e a versatilidade com que sua voz se adequa aos diferentes momentos e atmosferas.

“Criei as sinuosidades da melodia e o enlace com a harmonia de modo a espelhar a cada momento a poesia sutil de Paulo Souza, pensando uma solução musical para cada passagem poética. Em Alada, a música ajuda a destacar o diálogo entre as sonoridades das palavras que iniciam cada verso”, diz Molina.

O primeiro álbum do Música de Montagem foi lançado em 2018, sendo recebido com ótimas críticas da mídia especializada e bom feedback do público. Entre 2019 e o início de 2020  a banda apresentou-se seguidamente e com sucesso pelo estado de São Paulo e no Rio, passando por palcos como  Sesc Pompeia, Itaú Cultural, Áudio Rebel, Teatro Brincante, Casa de Francisca, Centro Cultural SP etc.

Sergio também é o autor do livro intitulado “Música de Montagem: a composição de música popular no pós-1967”, vencedor do Prêmio Funarte de Produção Crítica em Música (2016) e do Prêmio Tese destaque USP (2015), no qual discute a relação entre a criação musical e o desenvolvimento da tecnologia nos últimos 50 anos.

“É justamente essa relação entre uma música orgânica, com músicos tocando todas as notas no palco, e os desdobramentos que a tecnologia recente proporciona, que está por trás das texturas sonoras que são criativamente exploradas pela banda. Sons eletrônicos, pedais de loop na voz, bateria acústica e eletrônica, pedais de efeitos no baixo, violão processado e muito mais.”

Confira os novos singles e a entrevista completa com Molina e Xofan no Podcast MPB Unesp